terça-feira, 31 de julho de 2012

"Doutor, dei três tiros em um cara".

Amanhecia o dia, o celular tocou e, ao atender, ouvi: "Doutor, dei três tiros em um cara". O meu coração disparou naquele instante e, mesmo não estando calmo, tentei acalmá-lo, pedindo para que me contasse exatamente o que aconteceu. Mas ele ficou ainda mais nervoso, não me contava nada, apenas dizia que não dava para falar por telefone e que queria saber o que deveria fazer.
Perguntei se ele tinha o endereço do escritório e diante da resposta positiva falei para ele ir para lá. Me troquei rapidamente e corri para o escritório. Lá chegando, esperei por alguns minutos e o interfone tocou. Era o pretenso cliente, ainda desesperado. Disse, em síntese, que estava sendo ameaçado e que se antecipou ao seu algoz, desferindo-lhe três tiros diante de testemunhas.
Essas testemunhas residiam no mesmo bairro e conheciam o pretenso cliente e a vítima, o que permitia concluir que ele seria identificado em pouco tempo e que a negativa de autoria seria impossível. Ele já havia dispensado a arma e trocado de roupa, não estava sendo perseguido e já não havia situação de flagrante, contudo, de acordo com o que se vê na prática, se fosse pego seria preso.
Depois de tratar a respeito dos honorários, fui até a delegacia de polícia. Disse que gostaria de tratar a respeito de um homicídio ocorrido horas antes e me disseram que estavam indo cercar a casa do autor. Me apresentei como advogado dele, deixei um cartão com os investigadores e deixei claro que ele queria se apresentar.
Quando isso acontece, na grande maioria dos casos, a polícia prefere aguardar alguns dias para agendar a oitiva do investigado, para que possam ouvir as testemunhas e se preparar para inquiri-lo. Nesse caso, contudo, agendaram a oitiva para o dia seguinte e me disseram que se ele comparecesse não pediriam a prisão temporária.
O rapaz era primário, com bons antecedentes, residência fixa e ocupação lícita. Apresentei-o na manhã seguinte e os policiais logo perceberam que o tal rapaz não era "do crime" e estava disposto a confessar. Também perceberam que a vítima, pelo contrário, tinha vastos antecedentes e era figura conhecida da polícia. Sequer houve pedido de prisão e o inquérito ainda está tramitando.
Apesar da revogação dos artigos 317 e 318 do Código de Processo Penal, a apresentação espontânea ainda é possível e, via de regra, não pode redundar em prisão em flagrante, ainda que aconteça no mesmo dia. Há delegados que prometem não pedir a prisão, mas pedem, assim como há delegados que efetuam a prisão em flagrante mesmo sabendo que não está configurada a situação flagrancial.
É importante conversar com o delegado e com os investigadores, deixando clara a intenção de colaborar e se prontificando a indicar testemunhas. O risco sempre existirá, já que no Brasil, infelizmente, "o direito é aquilo que você pede e o juiz dá", haja vista que o relaxamento da prisão ilegal vem sendo mitigado a cada dia, embora venha a matéria disciplinada na Constituição Federal. O que está na lei, na prática, nem sempre surte o efeito esperado...
Recomenda-se atender aos clientes sempre no escritório. Nos dias de hoje, mesmo para os advogados criminalistas, é muito perigoso aceitar encontrar-se com um pretenso cliente em algum local desconhecido. Numa hora dessas é preciso deixar de lado toda a ganância e agir com prudência. Se a pessoa estiver escondida e não quiser sair, algum familiar certamente poderá ir ao escritório.
Eu sei, ele confessou e várias pessoas presenciaram. Mas o cliente se preocupa com a liberdade e é sempre isso o que mais importa, para ele e para o advogado. O resto fica para o tribunal do júri, onde será escrito o capítulo final dessa história. A tese já está montada, mas sobre o assunto eu prometo tratar em outro post.

2 comentários:

  1. Muito bom esse blog. Parabéns, não deixe de escrever não. Só comecei a ler agora em 2015, mas tá me ajudando bastante

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