quinta-feira, 14 de abril de 2016

O escrivão não está (ou saiu, ou está de férias...)


Hoje vou tratar sobre algo rotineiro, mais rotineiro do que a ida de advogados criminalistas à Delegacia de Polícia, vou tratar sobre enfrentar a burocracia em uma Delegacia de Polícia, cujo sistema, ao que tudo indica, parece ter sido idealizado para não funcionar ou, no mínimo, para funcionar depois de causar o máximo de aborrecimento possível.
Em qualquer ida ao fórum, salvo quando "cai" o sistema, o advogado consegue descobrir o número de um processo no cartório distribuidor, vai até o cartório da vara, descobre a localização do processo e consegue examiná-lo, até mesmo quando conclusos, pois se trata de prerrogativa profissional, importantíssima para o exercício da defesa.
A questão é, por que as coisas complicam tanto na Delegacia de Polícia? Creio que a cultura inquisitorial por trás da instituição tenha influenciado, mas não há como deixar de reconhecer problemas elementares de gestão e, em muitos casos, situações de evidente má vontade. Como é difícil conseguir ter acesso a um inquérito policial...
Às vezes não conseguem descobrir o número do inquérito pelo nome do investigado, noutras vezes nem mesmo com o nome e o número do documento, e não é raro que não consigam, sequer, encontrar o inquérito, mesmo com o número. E então perguntam: Sabe o nome do escrivão? Para depois dizerem que ele saiu, foi almoçar ou está de férias.
Como é possível que, nos dias de hoje, somente um escrivão específico consiga localizar um inquérito? O advogado, muitas vezes, vai embora sem discutir, mas há situações em que se mostra imperioso o acesso à investigação! E então, como proceder? Atualmente, tenho ido às Delegacias de Polícia com um pedido de vista por escrito e tem funcionado.
Quando dizem que o escrivão não está, peço para que recebam a minha petição e neguem a vista dos autos por escrito, afinal, é uma prerrogativa do advogado. Na grande maioria das vezes, por incrível que pareça, conseguem superar todas as dificuldades e obstáculos, localizam o inquérito policial e a petição se torna  até desnecessária.
Caso o advogado tenha negado o seu acesso ao inquérito, sem nenhuma justificativa legal, poderá buscar socorro junto ao Poder Judiciário, fazendo valer as suas prerrogativas. Poderia falar, também, na adoção de medidas administrativas, mas me parece, em regra, um pouco exagerado. A hipótese, porém, dependendo do contexto, não fica descartada.

quinta-feira, 2 de julho de 2015

A OAB e a restrição às redes sociais


Independentemente da profissão, o início é sempre muito difícil, pois leva tempo até que o profissional alcance alguma visibilidade no mercado. Na advocacia a situação se complica, na medida em que há inúmeras restrições à propaganda, o que é até razoável, mas, com o advento das redes sociais, os jovens advogados encontraram ferramentas importes para a manutenção e ampliação de suas redes de relacionamento.
Atualmente, porém, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil estuda novas restrições à publicidade, buscando atingir a utilização das redes sociais. Essa medida, extremamente inoportuna nos dias atuais, visa, a toda evidência, beneficiar os advogados já estabelecidos no mercado, causando enorme prejuízo àqueles que se iniciam na profissão, contrariando, sem justificativas, tendências inevitáveis.
O Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil e o Código de Ética já disciplinam a publicidade, de sorte que os dispositivos a esse respeito aplicam-se perfeitamente à utilização das redes sociais, possibilitando a punição do profissional quando houver abuso. A restrição pura e simples, voltada às redes sociais, contudo, é uma medida arbitrária e desarrazoada, manifestamente incompatível com a modernidade.
Dizer que as redes sociais apenas favorecem as grandes bancas, com elevado poder econômico, e que é isso o que se pretende coibir soa até ridículo. Essa proposta busca, justamente, beneficiar as grandes bancas e os advogados já renomados, mantendo os jovens advogados nas sombras, a fim de que não sejam notados e conhecidos, restringindo o ainda mais o mercado. Estão dando as costas, mais uma vez, aos jovens advogados.
Por que não se insurgem contra os baixíssimos salários pagos aos advogados em início de carreira? Por que concordam com o pagamento de honorários pífios nos convênios firmados? É difícil encontrar algum jovem advogado que não tenha a impressão de que o pagamento da anuidade não traz nenhum retorno, pois, verdade seja dita, não traz mesmo. Não bastasse isso, ainda pretendem excluir os jovens advogados do mapa.
Tudo gira em torno da internet e qualquer pessoa de mediana inteligência percebe isso. Somente a advocacia vai ficar presa ao "cartãozinho"? Ninguém está pedindo para anunciar na televisão ou em outdoors, o que se pretende é, unicamente, existir, na medida em que, na atualidade, o que não está na internet não está no mundo. Uma entidade de classe não deveria se preocupar em a atacar a própria classe.

sexta-feira, 15 de maio de 2015

Tribunal do júri: storytelling


Todo processo busca, de certa forma, reconstruir um fato histórico, a fim de que o juiz possa, através das provas produzidas, formar o seu convencimento. Esse fato, aliás, conforme aponta a doutrina, é o próprio objeto do processo, ou seja, o fato criminoso imputado ao acusado. Isso também se aplica ao Tribunal do Júri, exceto no que tange à apreciação, que será realizada pelos jurados e não pelo juiz togado.
É comum verificar advogados e promotores que atuam no Tribunal do Júri quase que de maneira passiva, limitando-se à leitura de laudos, depoimentos, doutrina e jurisprudência, o que, a toda evidência, não se mostra eficaz. Nesses casos, em verdade, os jurados se mostram cansados e entediados, o que obviamente prejudica o processo de persuasão, sobretudo quando os recursos de comunicação são limitados.
Depois de assistir a alguns vídeos, conheci um método chamado de storytelling, que consiste, em resumo, na explanação de um assunto através de uma história. Pesquisei mais a respeito e, desde o primeiro júri, procurei utilizá-lo, adaptando-o, obviamente, ao contexto de cada julgamento e às necessidades de cada caso concreto. O objetivo deste artigo é, basicamente, explicar o funcionamento do método.
Sei, por experiência, que os jurados costumam considerar o perfil do acusado, o perfil da vítima e o motivo do crime, e sempre tive como pressuposto que nenhuma pessoa se sente bem diante da responsabilidade de condenar alguém, procurando, muitas vezes, encontrar algum motivo para decidir de modo a causar o menor dano possível. Uma história atraente e plausível, nesse contexto, pode dar resultado.
O jurado não se apega às vírgulas do processo e não há tempo suficiente para minúcias. É preciso contar a história para os jurados de acordo com as teses cuja admissão se pretende, prendendo-lhes a atenção e despertando-lhes a curiosidade. Não se deve, porém, incorrer em exageros ou encenações espalhafatosas, que podem refletir negativamente na credibilidade, que é um elemento muito importante.
Sempre começo pela história de vida do acusado, afinal, o réu não nasceu no dia do crime e, além disso, não deve ser tratado de maneira impessoal, distante. Também por essa razão procuro referir-me ao réu sempre pelo nome, e discorro a respeito de sua família e das circunstâncias por ele enfrentadas até o momento em que o crime ocorreu.
Conto a história da vítima, cujo passado não pode ser ignorado, e os jurados precisam conhecer os personagens principais do enredo. Pode haver, ainda, personagens coadjuvantes que desempenharam papeis relevantes no desenrolar dos fatos, os quais precisam ser identificados e individualizados, para que os jurados possam conhecê-los.
É muito importante explicar a relação entre o acusado e a vítima, o momento em que se conheceram e a relação que mantinham, ou o momento em que se encontraram, caso se trate de um evento acontecido aleatoriamente. Chega-se, enfim, aos antecedentes que levaram ao fato principal e ao próprio fato, que devem ser descritos em detalhes.
O importante é que a história seja assimilada pelos jurado e admitida como plausível. Não deve haver, num primeiro momento, preocupação com a explicação de questões técnicas envolvendo a lei, laudos periciais, doutrina e jurisprudência. É preciso, antes, criar um cenário favorável, para que o jurado possa, num segundo momento, aderir às teses.
É preciso, sem dúvida, rebater os argumentos contrários, reforçando os favoráveis, mas isso tudo também pode ser feito ao longo da explanação da história. O fundamental é que os jurados visualizem mentalmente as cenas, como se fizessem parte da história, como se pudessem sentir o que os personagens sentiam quando vivenciaram os fatos.
A empatia e a antipatia influenciam muito no resultado do julgamento, e é possível constatar que nem todas as escolhas são racionais, pois a emoção tem um papel extremamente relevante no processo decisório. Os sentimentos devem ser despertados através da narrativa, a fim de que os jurados optem pela decisão mais confortável.
Ingênuo é aquele que acredita que o jurado reconheceria o valor de Nelson Hungria, e perde o tempo tentando ensinar, com um pesado livro em mãos, teorias que os alunos de Direito demoram anos para aprender. E mais ingênuo ainda é aquele que se preocupa apenas com o Direito e se esquece dos fatos, da história que os jurados esperam ouvir.
Normalmente, costumo colocar as questões jurídicas na parte final do discurso, explicando como cada uma das teses se amolda à história contada, como os artigos da lei se encaixam no enredo, como serão formulados os quesitos e as respostas que espero obter em relação a cada um deles. O Direito não pode ser esquecido, mas, certamente, não é o principal.

terça-feira, 5 de maio de 2015

Doutrina: por onde começar?


A atuação na esfera criminal, em pouco tempo, evidencia que há uma crise na doutrina processual penal. Ao que parece, desde há muito tempo, os processualistas vêm repetindo, sistematicamente, o que outros processualistas escreveram no passado, compactando e resumindo, na maioria dos casos, sem estabelecer nenhum tipo de juízo crítico, asseverando, acerca dos aspectos mais controversos, que será necessário aguardar a posição da jurisprudência ou a posição definitiva do Supremo Tribunal Federal.
Afinal, qual é o papel da doutrina? Reproduzir, com outras palavras, tudo aquilo que já fora escrito e aguardar a posição da jurisprudência, com o devido respeito, é algo que somente evidencia o caráter eminentemente comercial da redação de novos livros. A doutrina deve servir como norte para a interpretação da lei e para as decisões judiciais, deve, em verdade, servir de base, conceituando, classificando, comparando e criticando aquilo que está posto, com a finalidade precípua de ensinar aos leitores.
Os autores tradicionais, repetidos á exaustão e sem nenhuma crítica, acabaram formando gerações de advogados, delegados, promotores e juízes, e muitos desses profissionais, e sobretudo os juízes, parecem ter parado no tempo, satisfeitos com os mesmos autores que lhes nortearam os estudos desde a época da faculdade. A jurisprudência, desse modo, não se renova, e os novos doutrinadores ainda insistem em aguardar essa mesma jurisprudência, auspiciosos pelo surgimentos de posições inovadoras.
Não se exige, exatamente, posições inovadoras, mas, pelo menos, posições compatíveis com a Constituição Federal de 1988, com os tratados internacionais ratificados pelo Brasil, com um Estado Democrático de Direito e com o princípio da dignidade da pessoa humana, em atenção aos direitos e garantias individuais conquistados ao longo de séculos de progresso civilizatório. Essa função incumbe à doutrina, que não pode se contentar com um papel coadjuvante, otimista, porém passivo e omisso.
A esse respeito, são valiosas as críticas trazidas por Lênio Streck. Mas o propósito desse breve artigo não é, unicamente, o de destacar essa crítica, e sim o de indicar, para aqueles que se iniciam na advocacia criminal, alguns autores que fogem á regra e podem contribuir para o aperfeiçoamento técnico, libertando o jovem advogado das amarras impostas pela graduação e abrindo novos horizontes, no afã de, quem sabe, iluminar uma nova geração de juristas e de entusiastas do processo penal.

Autores indicados:

Aury Lopes Júnior
Gustavo Henrique Badaró
Eugenio Pacelli
Antonio Scarance Fernandes
Fauzi Hassan Choukr

Há autores já renomados, conhecidos em todo o país e com uma extensa lista de serviços prestados à doutrina processual penal, e também autores que vêm se destacando há menos tempo. Essa lista não é exaustiva, e tampouco a ilustração que abre o texto, mas apenas uma indicação, um começo, para aqueles que pretendem se aprofundar. Há, ainda, clássicos que não podem deixar de ser lidos, como as obras de José Frederico Marques e de Fernando da Costa Tourinho Filho, mas sempre com uma visão crítica.

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

A limitação do habeas corpus em face da CADH

Embora já tenha tratado anteriormente a respeito da vedação ao habeas corpus substitutivo de recurso ordinário, andei pensando no assunto novamente, mas desta feita à luz da Convenção Americana de Direitos Humanos, que entrou em vigor, no Brasil, em 25 de setembro de 1992, através do Decreto n.º 678/1992, e que, além de assegurar inúmeras garantias individuais, também protege a liberdade de locomoção.
Prevê a Convenção que: "Nos Estados-Partes cujas leis preveem que toda pessoa que se vir ameaçada de ser privada de sua liberdade tem direito a recorrer a um juiz ou tribunal competente a fim de que este decida sobre a legalidade de tal ameaça, tal recurso não pode ser restringido nem abolido". Tem-se, nessa esteira, que a recente guinada jurisprudencial não encontra amparo na referida Convenção, pelo contrário.
Denota-se facilmente que a jurisprudência que vem se consolidando representa verdadeira afronta á Convenção Americana de Direitos Humanos. É sabido que o habeas corpus, apesar de previsto dentre os recursos no Código de Processo Penal, em verdade não se trata de recurso, mas de ação autônoma de impugnação, não obstante, salta aos olhos que o texto da Convenção aplica-se perfeitamente ao remédio heroico.
O único remédio colocado à disposição de toda pessoa que se vir ameaçada de ser privada de sua liberdade, e que pode ser endereçado a um juiz ou tribunal é o habeas corpus, haja vista que o recurso ordinário somente pode ser endereçado ao Superior Tribunal de Justiça ou ao Supremo Tribunal Federal. Não há como sustentar, portanto, que a Convenção, nesse tocante, diz respeito ao recurso ordinário.
O citado dispositivo da Convenção é muito claro ao prescrever que tal recurso (que tecnicamente não é um recurso) não pode ser restringido. Conforme ensina Piovesan (2005, p. 9): "[...] por força do art. 5.º, § 2º, todos os tratados de direitos humanos, independentemente do quorum de sua aprovação, são materialmente constitucionais".
Nessa esteira, o artigo 5.º, § 2.º, da Constituição, prevê que: "Os direitos e garantias expressos nessa Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte". Conforme o exposto, cuida-se de garantia materialmente constitucional.
Não se sustenta, portanto, o argumento segundo o qual o habeas corpus substitutivo de recurso ordinário burla o sistema recursal previsto pela Constituição. Isso porque não é possível restringir uma garantia individual, de índole constitucional, a pretexto de se resguardar o sistema recursal.
É importante lembrar que o princípio da dignidade da pessoa humana, que alicerça todo o sistema de direitos e garantias, repudia o sacrifício de direitos humanos em prol de interesses coletivos. A bem da verdade, aliás, restringir o habeas corpus interessa tão somente àqueles preocupados em diminuir o número de processos nos Tribunais.
Não obstante a questão já tenha sido enfrentada por outros ângulos, temos, de acordo com o exposto, que a Convenção Americana de Direitos Humanos veda qualquer tipo de tentativa de restrição ao habeas corpus. Cuida-se, a toda evidência, de mais um precioso argumento a ser utilizado diante dessa arbitrária corrente jurisprudencial.

Referências bibliográficas:

PIOVESAN, Flávia.Tratados internacionais de proteção dos direitos humanos e a Constituição Federal de 1988. Boletim IBCCRIM. São Paulo, n. 153, p. 8-9, ago. 2005.

quinta-feira, 20 de março de 2014

Crime organizado

Não é de hoje que o legislador vem demonstrando preocupação no que diz respeito à persecução penal das organizações criminosas. Nessa esteira, podem ser citadas três leis relacionadas ao tema, em ordem cronológica, a fim de facilitar a compreensão, quais sejam: Lei n.º 9.034/1995; Lei n.º 12.694/2012 e Lei n.º 12.850/2013.
Apenas a título de curiosidade, realizei uma breve análise acerca do tema, mais especificamente no que tange às leis mais recentes, para introduzir um estudo mais profundo. Trago abaixo algumas observações relacionadas aos pontos que mais me chamaram a atenção, mas sem nenhuma pretensão de esgotar o assunto, que é amplo.
A primeira delas, em síntese, definiu instrumentos de investigação de organizações criminosas, associações criminosas e quadrilhas ou bandos, contudo, não definiu organização criminosa, permanecendo, portanto, inaplicável nesse tocante, exigindo alguma solução. Evidenciava-se o gritante equívoco por parte do Legislativo.
Alguns passaram a sustentar que seria possível o emprego da definição de organização criminosa trazido pela Convenção de Palermo, mas a tese não foi aceita pelo Supremo Tribunal Federal, porquanto somente a lei pode funcionar como fonte formal incriminadora, e não havia na lei a figura típica da organização criminosa.
A Lei n.º 12.694/2012, por sua vez, trouxe a definição de organização criminosa, mas não cominou nenhuma pena, de modo que a referida prática continuou a ser atípica, apresentando-se, apenas, como uma forma de cometer crimes. A aludida lei prevê a possibilidade de um órgão colegiado julgar crimes praticados por organizações.
Definição: "associação de três ou mais pessoas, estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de crimes cuja pena máxima seja igual ou superior a quatro anos ou que sejam de caráter transnacional".
No ano seguinte surgiu a Lei n.º 12.850/2013, que trouxe uma nova definição de organização criminosa, que desta feita passou a ser crime, revogando a definição trazida pela lei anterior e revogando integralmente a Lei n.º 9.034/1995. Essa é a lei vigente, atualmente, no que diz respeito às organizações criminosas.
Em verdade, a definição é praticamente a mesma, pois a única diferença reside no fato de que a nova lei exige a associação de quatro ou mais pessoas, enquanto a lei anterior exigia três ou mais pessoas. De resto, vale frisar, os requisitos para que se possa cogitar a existência de uma organização criminosa são os mesmos.
O que chama a atenção é que a lei trata dos meios de investigação e de obtenção de prova, destacando-se a colaboração premiada, a ação controlada e a infiltração de agentes, mas revogou a disciplina, por exemplo, da captação ambiental de sinais eletromagnéticos, ópticos ou acústicos contida na Lei n.º 9.034/1995.
Denota-se que a nova lei revogou integralmente a lei anterior, de maneira expressa, mas não cuidou de todos os aspectos da lei revogada. A captação ambiental continua existindo como instrumento de investigação, mas a respectiva disciplina foi revogada, o que pode redundar numa situação de insegurança na sua utilização.
A pena cominada para o crime de organização criminosa varia de três a oito anos, sem prejuízo das penas correspondentes às demais infrações penais praticadas. O que chama a atenção é que há uma causa especial de aumento de pena quando for verificada a transnacionalidade do delito, e essa questão deve ser vista com cautela.
Em se tratando de uma organização criminosa configurada justamente por conta da transnacionalidade dos delitos, mesmo quando as penas desses crimes forem inferiores a quatro anos, a aplicação da causa de aumento de pena resultará em evidente bis in idem, porquanto essa circunstância já figura como elemento do tipo penal.
A causa de aumento somente poderá ser aplicada em se tratando de infrações cujas penas sejam superiores a quatro anos e de caráter transnacional. O quantum da pena funciona para a configuração da organização criminosa, enquanto a transnacionalidade justifica a majorante. Fora dessa hipótese, não há como ser aplicada a causa de aumento.
Além disso, a lei considera crime revelar a identidade, fotografar ou filmar o colaborador, sem sua prévia autorização por escrito. Ou seja, cuidou apenas de proteger o réu colaborador nesse tocante, deixando de lado o agente infiltrado, que também corre um risco enorme caso a sua identidade seja revelada publicamente.
Por fim, foi alterado o nomen juris do crime de quadrilha ou bando, que passa a ser "associação criminosa". A pena foi mantida, de modo que ainda será cabível a suspensão condicional do processo, o que também se apresenta como um evidente lapso legislativo. No entanto, foi aumentada a pena do crime de falso testemunho.
Talvez isso se deva à previsão no sentido de que o colaborador renunciará ao direito ao silêncio e estará sujeito ao compromisso legal de dizer a verdade. Tentaram, ao que parece, estabelecer uma relação entre a colaboração premiada e o crime de falso testemunho. Esqueceram-se, contudo, de alterar o preceito primário.
Cometem o crime de falso testemunho a testemunha, o perito, o contador, o tradutor e o intérprete, jamais o réu. O acusado, na colaboração, confessa a prática do crime e, portanto, não deixa de ser acusado e nem passa a ser testemunha, para que possa incorrer no tipo penal em comento. Esse é mais um aspecto curioso da lei.
Estamos diante de um diploma relativamente recente, que merece ser lido e estudado com cautela, pois num primeiro olhar já se pode identificar algumas incongruências. De qualquer modo, ao que tudo indica, serão cada vez mais comuns as imputações relativas a organizações criminosas, exigindo o preparo dos operadores do direito.

segunda-feira, 10 de março de 2014

Crimes hediondos


Recentemente, tive acesso ao relatório final de uma pesquisa realizada pelo Instituto Latino Americano das Nações Unidas para Prevenção do Delito e Tratamento do Delinquente (ILANUD), com relação à Lei dos Crimes Hediondos. Cuida-se de um trabalho excelente, cujos resultados despertaram-me a atenção, merecendo destaque.
Sabe-se bem que a própria Constituição de 1988 preconizou a criação da Lei dos Crimes Hediondos, ao prescrever que: "a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos [...]".
No decorrer do ano de 1989 foram apresentados diversos projetos de lei relacionados à matéria e um novo projeto foi apresentado em maio de 1990, passando a tramitar sob regime de urgência. O projeto foi aprovado pelo Senado em junho e encaminhado à Câmara, que elaborou um substitutivo, contemplando os demais projetos de lei.
O substitutivo foi aprovado e retornou para o Senado, onde foi aceito, sendo a lei promulgada  pelo Presidente da República em 25 de julho de 1990. Houve, na época, reclamações de parlamentares no sentido de que não tiveram tempo para analisar o substitutivo. Nesse contexto, surgiu a Lei n.º 8072, de 25 de julho de 1990.
Não são poucos os que relacionam a criação da referida lei á repercussão do sequestro do empresário Abílio Diniz, ocorrido em 1989. O fato é que, de qualquer sorte, o texto constitucional precisava ser regulamentado, mas a pressa demonstrada não deixa de chamar a atenção, indicando que essa relação pode, de fato, ter existido.
Em 1994 a lei foi alterada, incluindo-se o homicídio qualificado no rol dos crimes hediondos. Na ocasião, os parlamentares destacaram o empenho demonstrado pela novelista Glória Perez no sentido de que a alteração fosse levada a efeito, após o assassinato de sua filha que, como é sabido, também causou grande repercussão.
Pode-se citar ainda o sequestro do publicitário Roberto Medina, em 1990, as chacinas da Candelária e de Vigário Geral, em 1993, as pílulas de farinha, em 1998, e o assassinato do menino João Hélio, em 2007, como fatos históricos que influenciaram na criação ou nas alterações levadas a efeito em relação à aludida lei.
Denota-se facilmente que as discussões em torno da lei em comento sempre se revestiram de um caráter emocional. O que importa, atualmente, é verificar se essa lei surtiu o efeito esperado, impactando nos índices de criminalidade, no sentido de diminuí-los. Será que uma lei considerada mais severa diminuiu esses índices?
De acordo com o relatório, não foi possível concluir que a Lei dos Crimes Hediondos causou o efeito esperado quando de sua aprovação, e que nem mesmo as alterações posteriores surtiram efeito no sentido de reduzir a criminalidade. O que salta aos olhos, em verdade, é que a lei contribuiu para a superpopulação carcerária.
Não é possível relacionar diretamente o fortalecimento das facções criminosas à lei em exame, mas há uma relação inegável entre esse fenômeno e a apontada superpopulação carcerária. A lei, como era de se esperar, não inibe a prática de crimes, sobretudo quando se trata de crimes não premeditados, praticados por impulso.
Prova disso é que não são poucos os casos de reincidentes específicos em crimes considerados hediondos. A verdade é que o preso só toma conhecimento da lei e de seus efeitos negativos depois de encarcerado. Ora, seria até ingenuidade imaginar que um pretenso criminoso consulta a legislação antes de optar pelo crime.
O surgimento da Lei dos Crimes Hediondos decorreu de forte pressão popular e midiática, tendo um elevado apelo emocional, mas não resolveu nada. Demais disso, a constitucionalidade dessa lei foi e é questionada até hoje, já tendo havido notáveis mudanças, a exemplo do que ocorreu com o regime integralmente fechado.
A vedação à liberdade provisória e o regime integralmente fechado, que já haviam sido considerados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, acabaram sendo revogados no ano de 2007. Ainda hoje se fala em incluir novos crimes no rol dos hediondos, como se isso fosse suficiente para acabar com a criminalidade.
A Lei  n.º 8072/1990 está prestes a completar 24 (vinte e quatro) anos, mas não é possível verificar, na prática, nenhum dado que aponte para a redução nos índices de criminalidade. O que se têm, verdade seja dita, é uma superpopulação carcerária que aumenta a cada dia e o consequente e inegável fortalecimento das facções criminosas.
As políticas criminas, especialmente no que tange à criação de leis de natureza penal e processual penal, precisam ser repensadas e reavaliadas. O legislador, na atualidade, continua agindo como no passado, cedendo às pressões mais diversas e, em grande parte, infundadas, e a população continua achando que isso resolve.

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