sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Reconstituição de crime

Conforme prescreve o Código de Processo Penal, para verificar a possibilidade de haver a infração sido praticada de determinado modo, a autoridade policial poderá proceder à reprodução simulada dos fatos. É o que se convencionou chamar de reconstituição, muito comum em casos de homicídio, mas que pode ser realizada em quase todos os delitos, salvo naqueles que contrariem a moralidade ou  a ordem pública. É impensável reproduzir um estupro, por exemplo.
Recomenda-se que o advogado fique atento sobretudo durante a fase inquisitiva, pois é sempre possível que a autoridade policial deseje realizar a reconstituição do crime, mas a providência também pode ser requerida na fase judicial. Marcada a diligência, é prudente comparecer ao local com alguma antecedência, preferencialmente na companhia do cliente, para apurar como os fatos ocorreram.
A versão a ser apresentada para os peritos deve estar de acordo com os demais laudos e com a versão apresentada em sede de interrogatório. Caso os demais laudos não tenham sido juntados é possível requerer o adiamento da reconstituição, mas a decisão ficará a cargo da autoridade, que normalmente tem pressa para relatar o inquérito. Sem embargo, nada impede que a defesa, posteriormente, requeira a realização de nova reprodução simulada dos fatos.
No local os peritos farão perguntas a respeito da dinâmica dos fatos às testemunhas indicadas pela autoridade requisitante e ao investigado, conduzirão a reprodução simulada dos fatos de acordo com as diferentes versões e tirarão fotografias para embasar a elaboração do laudo. O advogado deve acompanhar de perto o trabalho dos peritos, prestando alguns esclarecimentos e fazendo observações.
Recentemente acompanhei uma reconstituição num caso de homicídio culposo de trânsito. No local havia muitos amigos e familiares da vítima, que tentaram interferir na realização da diligência, dizendo que o investigado estava mentindo e que os fatos não ocorreram da forma mencionada. Pedi para que a perita perguntasse se alguma daquelas pessoas havia presenciado o acidente e ela pode verificar que todos estavam levantando hipóteses, mas não viram nada.
Tenho certeza absoluta de que, sem a presença de advogado no local, teria sido realizada uma reconstituição com base nas versões dessas "testemunhas", o que causaria enorme prejuízo ao investigado, notadamente porque já estava em trâmite uma ação indenizatória relacionada aos fatos e havia manifesto interesse no resultado da diligência. A perita explicou a todos que, para simular os fatos, precisava de testemunhas presenciais e não de hipóteses e opiniões.
Também foi possível esclarecer que a distância entre o local do impacto e a localização do corpo devia-se ao fato de a vítima ter ficado presa sobre o capô do veículo após o choque, o que ficou comprovado pelo exame pericial realizado no automóvel, e que, portanto, não houve arremesso. Trata-se de circunstância importantíssima, especialmente para o cálculo da velocidade do veículo.
Durante a reconstituição muitos outros detalhes foram passados aos peritos, que não tiveram acesso aos demais laudos e, ao que tudo indica, poderiam ser influenciados pelos amigos e parentes da vítima. O clima era muito tenso e chegamos a ser hostilizados por eles. Em situações como essa os ânimos estão sempre exaltados e é preciso entender o sofrimento das pessoas, sem revidar às provocações.
É óbvio que, se a situação ficar insustentável, pode-se deixar o local ou acionar a polícia para preservar a integridade física dos presentes e permitir a realização completa da diligência. Cabe lembrar, por oportuno, que o investigado não pode ser obrigado a participar da reconstituição, e há casos em que a recusa mostra-se imperiosa, por questões técnicas ou de segurança.
O advogado, acreditando no cliente, pode ser pego de surpresa participando da reconstituição antes da juntada dos demais laudos periciais. Se o cliente disser, na reconstituição, que o disparo ocorreu da esquerda para a direita, terá problemas se o laudo necroscópico atestar que o disparo atingiu a vítima de cima para baixo.
Especialmente nos crimes dolosos contra a vida a participação na reconstituição aumenta muito a compreensão do advogado a respeito dos fatos, potencializando também a sua capacidade de narrar os fatos e de descrever o local para os jurados. Muitos casos encontram solução nos detalhes e a reconstituição é cheia desses detalhes.
Depois de algum tempo será encartado aos autos um laudo contendo fotos sequenciais ou vídeos, de acordo com cada uma das versões colhidas pelos peritos. Trata-se de ferramenta muito útil quando bem explorada. É imprescindível para o advogado acompanhar a reconstituição, e a negligência é imperdoável e pode trazer péssimas consequências. 

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Cabe ao advogado entregar o "jumbo"?

Numa situação de prisão, é normal que os familiares peçam para que o advogado entregue ao preso cartas, roupas, cobertores, materiais de higiene pessoal, alimentos e cigarros. Há quem não veja problemas nisso, mas eu evito atender aos pedidos. O advogado é contratado para o exercício da advocacia, para a defesa técnica e não para prestar esse tipo de assistência, que obedece a regras previamente estabelecidas pela administração penitenciária.
O "jumbo" é o nome dado à alimentação vinda de fora, trazida por familiares ou amigos. Ninguém ignora que as pessoas, muitas vezes, valem-se do "jumbo" para encaminhar drogas, celulares e chips para os detentos, ocultos em meio aos alimentos e roupas. Numa situação dessas, independentemente do nível da relação de confiança existente, deve o advogado recusar-se a intermediar a entrega. Basta dizer que a entrega de materiais cabe á família e não ao advogado.
Na última segunda-feira, dia 27 de agosto de 2012, um advogado foi preso na cidade de Araraquara, acusado de tentar entregar celulares ocultos em um par de muletas. Inquirido a respeito, afirmou que a mãe do preso pediu para que entregasse as muletas ao filho. Não me interessa, evidentemente, o que realmente aconteceu neste caso, mas trata-se de um exemplo claro do risco inerente a esta prática.
Antigamente era comum o advogado entregar cigarros ao preso, já que se trata da moeda corrente no meio carcerário. Essa situação é retratada no filme "Meu nome não é Johnny". Muitos colegas ainda se prestam a isso, mas eu entendo que não é essa a função do advogado. Se em meio à entrega houver drogas, celulares ou chips ninguém vai acreditar que o ingênuo advogado não sabia de nada.
Na prisão em flagrante, o advogado deve perguntar para os policiais se os familiares podem entregar roupas, cobertores, toalhas e materiais de higiene ao preso, deixando a entrega, em caso positivo, aos familiares. Caso não haja tempo hábil para tanto, deve a família entrar em contato com a administração do estabelecimento prisional respectivo, a fim de verificar como realizar a entrega.
O exercício da advocacia criminal exige cautela redobrada. Leva muito tempo para construir uma reputação, mas basta um deslize para destruí-la. Vale lembrar que há, infelizmente, muitas autoridades públicas que adorariam ver o advogado numa situação crítica, e que fariam de tudo para prejudicar o profissional, principalmente se tiverem a certeza de que conseguirão dar algumas entrevistas.  

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Memoriais nos Tribunais


Há nos Tribunais brasileiros um número imenso de habeas corpus, recursos e ações originárias. Seria ingenuidade imaginar que Ministros, Desembargadores e seus respectivos assessores dispõe de condições adequadas para analisar todos os casos com a máxima atenção, sem deixar passar nenhum detalhe ou ponto relevante. Disso decorre a prática usual consistente em entregar memoriais para os Magistrados antes do julgamento.
Nos memoriais, deve o advogado resumir o conteúdo de suas razões recursais ou de habeas corpus, chamando a atenção do julgador para aspectos e argumentos que corroborem as teses defensivas. Também é possível valer-se dos memoriais para levar aos julgadores eventuais esclarecimentos ou documentos que interessem ao deslinde da causa. É preciso ter elevada capacidade de síntese, para não transformá-los em novas razões.
Regra geral, não pode o advogado inovar em sede de memoriais. Mas o exercício da advocacia muitas vezes submete o advogado a situações problemáticas, cuja solução nem sempre é fácil de encontrar. Isso ocorre, por exemplo, quando o advogado é contratado após a apresentação das razões por outro colega, para proferir sustentação oral e eventualmente atuar nos Tribunais Superiores, e se depara com algum fato ou argumento novo.
Numa situação como essa, em se tratando de questão de ordem pública, de uma nulidade absoluta por exemplo, seria absurdo exigir que o advogado mantenha-se inerte, permitindo que o cliente seja prejudicado. Deve-se frisar que a nulidade absoluta pode ser declarada a qualquer tempo e que é sempre possível a concessão de habeas corpus de ofício. A liberdade não deve nunca estar sujeita a meras formalidades.
Em homenagem à lealdade processual é possível encaminhar memoriais também ao representante do Ministério Público, para que o parquet não seja pego de surpresa com novas alegações no momento do julgamento. Já tive a oportunidade de ver um Desembargador revoltado com a veiculação de novas teses em memoriais e essa revolta residia na inexistência de previsão legal e na surpresa para o representante do Ministério Público.
Não existe, de fato, previsão legal para a entrega de memoriais, mas trata-se de uma prática já consagrada pelos costumes. De todo modo, entendo que a inovação somente é possível em caso de questões de ordem pública, mas é preciso justificar essa opção nos próprios memoriais ou na sustentação oral, por uma questão de lealdade. O advogado deve zelar pela defesa da liberdade do cliente, sem medo de desagradar a quem quer que seja.
Recomenda-se entregar os memoriais pessoalmente para cada um dos julgadores, aproveitando a situação para resumir, numa breve conversa, as razões defensivas. Nada impede, porém, o envio pelo correio ou a simples entrega nos respectivos gabinetes. Já consegui enviar memoriais para o Superior Tribunal de Justiça por meio do peticionamento eletrônico, mas soube que, regra geral, não podem ser encaminhados desta forma.
O que se nota é que os memoriais ficam sob a responsabilidade dos assessores e são entregues aos julgadores antes da sessão de julgamento. É importante, pois, consignar nos memoriais e no envelope o número do processo, o respectivo relator e a data do julgamento, a fim de facilitar o trabalho dos funcionários no gabinete. Se o julgamento for designado para data próxima é possível pedir o adiamento por uma sessão.
Recentemente, num habeas corpus em que pretendia o relaxamento da prisão por excesso de prazo e sabia que o Tribunal já havia sido informado a respeito do encerramento da instrução, o que culminaria do não conhecimento da ordem, entreguei memoriais aos Desembargadores, demonstrando, com base na numeração dos lacres, que as amostras descritas no laudo pericial não correspondiam àquelas apreendidas quando dos fatos.
O excesso de prazo foi provocado justamente pela demora na juntada do referido laudo. Toda a sustentação oral foi no sentido de que, depois de tanto tempo, num processo que tramitava com réu preso, juntaram o laudo errado. Apesar do encerramento da instrução a ordem foi conhecida e concedida por unanimidade. Trata-se de um exemplo prático que justifica a importância do manejo dos memoriais pela defesa.
Cabe frisar, já encerrando, que a Constituição Federal garante aos acusados a ampla defesa, com todos os meios e recursos a ela inerentes. O princípio da ampla defesa assegura o emprego de todos os meios lícitos de defesa, e, como é sabido, tudo aquilo que não é proibido - por força do princípio da legalidade - deve ser considerado lícito e permitido. Trata-se aqui de um precioso instrumento de defesa, que pode e deve ser utilizado.

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Audiência de instrução


As primeiras audiências são sempre motivo de grande preocupação para aqueles que se iniciam na advocacia criminal. No dia da audiência o clima fica tenso, há uma sensação de desconforto, de medo e de preocupação. A vontade de ver prevalecer a tese defensiva é sempre proporcional ao receio de vê-la ruir diante de uma pergunta capciosa.
Essa sensação é fruto da descarga de adrenalina, que pode ser bem aproveitada pelo advogado. É preciso estar sempre atento a tudo o que acontece. O advogado não é mero espectador, pelo contrário, deve participar ativamente da audiência, sempre com o escopo de produzir as provas que interessam à defesa e de desconstruir a tese acusatória.
Mas uma boa audiência começa muito antes do horário marcado. Deve o advogado conversar previamente com as testemunhas de defesa para apurar o que cada uma delas tem a dizer, bem como para explicar como será a audiência, como elas devem se portar e o que não devem fazer, esclarecendo todas as dúvidas e amenizando eventuais receios.
Também é necessário preparar o cliente para o interrogatório, submetendo-o ao mesmo tipo de perguntas que lhe serão feitas em audiência. É preciso ser rigoroso para corrigir possíveis falhas e lapsos, deixando claro que o interrogatório é um meio de defesa, uma oportunidade única de esclarecer os fatos e convencer o Magistrado.
É aconselhável preparar as perguntas com antecedência, por escrito, mas nada impede que, no decorrer do ato processual, surjam novas indagações. As perguntas devem visar respostas que confirmem a tese da defesa ou desconstruam a tese exposta na inicial acusatória. Questões irrelevantes e impertinentes devem ser evitadas.
Durante a audiência, o profissional deve tratar o Magistrado, o Promotor de Justiça e os serventuários com urbanidade, exigindo sempre o mesmo tratamento. Isso não significa que o advogado deve se intimidar, evitando o embate para não desagradar ao Magistrado.
Toda nulidade deve ser consignada em ata. Quase sempre que isso ocorre, há uma tentativa por parte de alguns Magistrados no sentido de intimidar o advogado e de fazê-lo voltar atrás, mas é preciso ser firme e insistir para que o ocorrido fique consignado em ata.
Quando houver desacordo com a legislação processual, vale a pena pedir a palavra pela ordem, arguir a nulidade, abrir o código e ler o respectivo dispositivo legal. Nenhum Juiz gosta de reconhecer uma nulidade causada por ele próprio, e na grande maioria das vezes tentam desacreditar o advogado com um discurso de autoridade, tentando justificar o injustificável e dar juridicidade ao ato. 
É sempre difícil confrontar o texto legal. Numa situação como essas, de improviso, é sempre muito difícil para o Magistrado justificar a razão pela qual não está observando a legislação processual, e as justificativas, muitas vezes, passam longe da boa técnica. Essa é a razão pela qual nos deparamos com alguns absurdos.
Exemplo disso foi o que ocorreu no júri do caso Eloah, quando a Magistrada, para justificar o indeferimento de perguntas da defesa, asseverou que "o princípio da verdade real não existe ou não tem esse nome". Qualquer bobagem, dita em tom prepotente, por um Juiz de Direito, alcança aparência de verdade. Muito cuidado com isso!
Também há Magistrados que gostam de expor o advogado diante do cliente. O advogado deve exigir respeito e tratamento urbano, evitando ao máximo envolver-se em discussões mesquinhas e inúteis para a defesa, consignando tudo, absolutamente tudo, na ata da audiência. Hoje sabe-se que muito pouco ou quase nada se resolve em primeira instância, que funciona, em verdade, como mero rito de passagem.
Com o advento das gravações, alguns Juízes recusam-se a consignar possíveis ocorrências em ata, dizendo que já está gravado. Isso é um absurdo, pois a legislação é muito clara ao prescrever que todas as ocorrências devem ficar consignadas na ata, e não há como impetrar um habeas corpus eletronicamente com uma mídia digital em anexo. 
É possível também que, ao final da audiência, sejam realizados debates orais. A tese defensiva já deve estar preparada antes mesmo da audiência e o advogado necessita prestar muita atenção nos depoimentos, pois é temerário relegar os debates ao mero improviso. Depois é só ler tudo com muita atenção, assinar e ir embora.

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Dica de leitura: Oratória para advogados


A obra "Oratória para advogados e estudantes de direito", de Reinaldo Polito, é um ótimo instrumento para aqueles que militam na advocacia. Falo em instrumento de trabalho, pois não se trata de obra que merece ser lida e esquecida numa estante. Não, pelo contrário, deve ser lida e relida, estudada e interpretada, sempre que possível. Funciona, em verdade, como um manual, para ser consultado reiteradamente, sempre que as circunstâncias exigirem.
Este maravilhoso livro trata dos atributos da boa oratória do advogado, onde aborda a credibilidade, a voz, o vocabulário, a expressão corporal e a aparência, bem como das técnicas de apresentação e das circunstâncias especiais, tais como o improviso e as entrevistas, no rádio e na televisão. De linguagem simples, contém ainda ilustrações extremamente relevantes e elucidativas, principalmente no que diz respeito aos gestos e à postura.
É sabido que se costuma exigir de todo e qualquer advogado uma oratória impecável ou, no mínimo, satisfatória, e que essa exigência multiplica-se no que toca aos advogados criminalistas, já que os grandes criminalistas do passado e do presente sempre se notabilizaram nesse quesito. É nas sustentações orais e no júri que se destacam os melhores advogados, e para quem quer crescer profissionalmente não há como evitar situações como essa para sempre.
Afirmo que notei uma melhora considerável em minha comunicação diante de clientes e advogados mais experimentados, nas incontáveis reuniões e exposições inerentes ao exercício da advocacia. Também verifiquei melhoras nos debates, nas sustentações orais e no relacionamento com a imprensa. É óbvio que não basta a leitura de um único livro, mas lhes apresento aqui uma das principais - talvez a principal - obras a respeito da oratória.
Reinaldo Polito é um excelente e renomado professor, que ministra um curso de oratória na cidade de São Paulo, escreve artigos sobre o tema em diversas revistas e jornais e tem vários vídeos disponíveis na internet. Aborda, com precisão e simplicidade, uma oratória moderna e eficaz, extremamente útil nessa época em que já não há mais espaço ou paciência para os "Rolando Lero" de plantão. Como se diz: Falar até papagaio fala. Comunicar é outra coisa.