quinta-feira, 19 de setembro de 2013

O habeas corpus e a razoável duração do processo


Pode-se dizer que, pelo menos na grande maioria das comarcas do interior do Estado de São Paulo, a tramitação processual passou a ser mais célere após as alterações na legislação processual penal, atendendo ao mandamento contido no Pacto de São José da Costa Rica e na Constituição Federal, de acordo com o qual o indivíduo tem o direito de ser julgado em prazo razoável. Isso é louvável, mas é uma pena que, na prática, não se aplique ao habeas corpus.
É muito comum que o julgamento de um habeas corpus demore mais que o julgamento da ação penal, o que traz enorme prejuízo para o acusado. Levando em consideração que o writ impetrado em face do indeferimento de liminar não é visto com bons olhos pelos Tribunais Superiores, fica o indivíduo, muitas vezes, impossibilitado de alcançar a jurisdição do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, antes da prolação da sentença.
Isso porque, em sede de sentença, deve o magistrado decidir, fundamentadamente, a respeito da decretação ou da manutenção da custódia cautelar. De acordo com a jurisprudência, a sentença constitui um novo título judicial, que substitui o decreto anterior de prisão preventiva, de sorte que o julgamento do habeas corpus impetrado em face dessa primeira decisão fica prejudicado. Não obstante, é um absurdo que o julgamento do writ demore tanto.
O remédio heroico deve ser célere, na medida em que visa assegurar a liberdade de locomoção. Tanto a legislação processual penal quanto os regimentos internos dos Tribunais preveem um julgamento rápido, mas não é isso o que se observa na prática, lamentavelmente. Parece até mentira, mas o habeas corpus chega a demorar mais de 02 (dois) anos para ser julgado pelo Superior Tribunal de Justiça, e o Supremo Tribunal Federal, muitas vezes, finge que não vê.
Num caso como esses, impetrei habeas corpus junto ao Supremo Tribunal Federal, arguindo excesso de prazo no julgamento do writ pelo Superior Tribunal de Justiça e negativa de prestação jurisdicional. O que me chamou a atenção foi que o relator, um dos Ministros mais indulgentes e piedosos no caso do "Mensalão", denegou a ordem, entendendo que o prazo superior a 02 (dois) anos é aceitável. O meu cliente pagou o preço por não ser o José Dirceu.
A decisão foi monocrática, então interpus agravo regimental, ao qual foi negado provimento, ficando vencido o Ministro Marco Aurélio, que entendeu inaceitável um habeas corpus demorar anos para ser julgado. Com a recente nomeação do Ministro Barroso, interpus embargos declaratórios, alimentando um último fio de esperança. Em caso de eventual empate, a ordem será enfim concedida, mas presumo, um tanto quanto pessimista, que isso não ocorrerá.
Até entendo que a quantidade de processos em trâmite é altíssima e que o habeas corpus acaba sendo banalizado, mas quando se trata de uma pessoa presa em busca de sua liberdade, não há o que justifique essa morosidade. O pior é lembrar que um certo banqueiro foi beneficiado, no Supremo Tribunal Federal, com duas liminares em menos de 48 (quarenta e oito) horas. O meu cliente, coitado, também pagou o preço por não ser um renomado e influente banqueiro.
Rebatendo as críticas, vão escolher a dedo algum habeas corpus manuscrito por um preso em papel de pão e dizer que todos, indistintamente, têm acesso à justiça. É mais uma grande mentira, um enorme engodo. Fico pensando na situação de milhares de indivíduos abandonados no cárcere, sem nenhuma assistência jurídica, e em todos aqueles que, mesmo assistidos, não alcançam socorro no Poder Judiciário, eles são verdadeiramente invisíveis ao sistema.
Deixando de lado o desabafo, fica a dica de ordem prática: em caso de demora no julgamento de habeas corpus, não há outra saída senão a impetração de novos writs aos Tribunais Superiores, buscando evitar o excesso de prazo e a negativa de prestação jurisdicional. Não significa que isso irá funcionar sempre, mas já há vasta jurisprudência nesse sentido, sobretudo no Supremo Tribunal Federal. O que não se deve fazer é aguardar indefinidamente.

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Redução da maioridade penal


Recentemente voltamos, mais uma vez, para a discussão respeitante à redução da maioridade penal. Imediatamente ressurgiram, na imprensa e na política, os defensores dessa medida extrema, influenciados por um caso de repercussão e aproveitando a onda para, num ano que antecede as eleições, requentar esse debate. Diz-se agora que deve ser realizado um plebiscito para resolver a questão. São necessárias, antes de enfrentar o tema, algumas considerações.
Isso porque o artigo 228 da Constituição Federal, como é sabido, considera inimputáveis os menores de 18 anos, que ficam sujeitos às normas da legislação especial. E não é apenas isso: O artigo 3, inciso I, da Convenção sobre os Direitos da Criança, ratificada pelo Brasil em 24 de setembro de 1990, prescreve que todas as ações relativas a crianças, levadas a efeito por órgãos legislativos, devem considerar, primordialmente, o melhor interesse da criança.
A referida Convenção, em seu artigo 40, inciso 3, alínea "a", também estipula o estabelecimento de uma idade mínima antes da qual se presumirá que a criança não tem capacidade para infringir as leis penais. Nessa esteira, o artigo 104, caput, do Estatuto da Criança e do Adolescente considera penalmente inimputáveis os menores de 18 anos, nos termos da Constituição Federal e do Código Penal, que também os entende, em seu artigo 27, inimputáveis.
De acordo com o artigo 5.º, § 2.º, da Carta Política, os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. Disso extrai-se que, embora o artigo 228 da Constituição não faça parte do Título destinado aos direitos e garantias individuais, contempla sim um direito individual das crianças e adolescentes.
Deve-se ter em mente, na análise da questão, o princípio da dignidade da pessoa humana e a Convenção sobre os Direitos da Criança. Sendo assim, o artigo 60, § 4.º, inciso IV, da Constituição Federal prescreve que não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais, que, na esteira da doutrina, constituem verdadeiras cláusulas pétreas, que não podem ser modificadas pelo legislador ordinário.
Nos termos do artigo 2.º da Lei n.º 9.709/1998, o plebiscito e o referendo são consultas formuladas ao povo para que delibere sobre matéria de acentuada relevância, de natureza constitucional, legislativa e administrativa. Nos termos do § 1.º desse dispositivo, o plebiscito é convocado com anterioridade a ato legislativo ou administrativo, cabendo ao povo, pelo voto, aprovar ou denegar o que lhe tenha sido submetido. Eis a síntese do que mais interessa.
Considerando que a inimputabilidade dos menores de 18 anos é considerada um direito individual, e que os direitos individuais não podem ser objeto de emenda constitucional tendente a aboli-los, alguns estão sustentando que seria possível a realização de um plebiscito, como forma de manifestação da soberania popular, para alterar essa cláusula pétrea. Essa possibilidade, do ponto de vista jurídico, não resiste à mínima reflexão, como se poderá observar.
Em primeiro lugar, por força da Convenção ratificada pelo Brasil, todas as ações legislativas relativas ao tema devem considerar, primordialmente, o melhor interesse da criança. Em segundo lugar, a Constituição Federal prescreve que a proposta de emenda tendente a abolir cláusulas pétreas não será objeto sequer de deliberação. Tecnicamente, portanto, seria impossível a realização de um plebiscito nesse tocante, em face das violações à Constituição.
É preciso que isso fique claro. Antes de discutir se a redução da maioridade penal é ou não necessária, deve-se ter em mente que isso é impossível, a menos que seja realizada uma nova assembleia constituinte. Em verdade, poderia a discussão encerrar-se por aqui, haja vista que o fato de serem os direitos individuais cláusulas pétreas já seria suficiente para colocar termo a esse debate, autorizando a conclusão de que mentem deliberadamente os seus defensores.
Superado esse ponto, faz-se necessário distinguir a maioridade da responsabilidade. O fato de serem os adolescentes considerados inimputáveis não permite concluir que ficarão impunes caso pratiquem atos infracionais. O Estatuto da Criança e do Adolescente autoriza a aplicação de medidas socioeducativas a partir dos 12 anos, idade em que tem início a responsabilização dos adolescentes. O que acontece é que não são submetidos a medidas penais.
É absolutamente mentirosa a informação segundo a qual o Brasil é um dos únicos países em que a maioridade penal tem início aos 18 anos. Muita gente confunde a maioridade penal com a responsabilidade que, consoante já exposto, no Brasil, tem início aos 12 anos. Na Alemanha isso ocorre aos 14, na Dinamarca aos 15, na Noruega aos 15, na França aos 13, no Japão aos 14, na Itália aos 14, na Espanha aos 14 e em Portugal aos 16, dentre outros que poderiam ser citados.
O Brasil, portanto, é até precoce, na medida em que começa a responsabilizar os adolescentes a partir dos 12 anos, aplicando-lhes medidas socioeducativas como, por exemplo, a advertência, a obrigação de reparar o dano, a prestação de serviços à comunidade, a liberdade assistida, a semi-liberdade e a internação. Mas a maioridade penal, de fato, começa aos 18 anos de idade, oportunidade em que os indivíduos podem ser submetidos a penas.
Em pesquisa realizada pela UNICEF, concluiu-se que a maioridade penal aos 18 anos foi adotada por 42 países, dentre os 54 pesquisados, tal como se verifica na nota emitida pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. É o caso, por exemplo, dos seguintes países: Argentina, Áustria, Bélgica, França, Canadá, Dinamarca, Itália, Israel, Noruega, dentre inúmeros outros. Também há países em que a maioridade penal inicia-se em idade posterior.
Como se pode observar na Convenção sobre os Direitos da Criança, a idade mínima estabelece uma presunção de incapacidade para infringir as leis penais. O Código Penal, cabe lembrar, vale-se, nesse tocante, de um critério estritamente biológico e não biopsicológico. Presume-se que os menores de 18 anos não têm capacidade para entender o caráter ilícito de seus atos ou de determinarem-se de acordo com esse entendimento. É, pois, uma presunção!
Não importa se o adolescente, a partir dos 16 anos, pode votar. Ocorre que, por força da Convenção, da Constituição, do Código Penal e do Estatuto da Criança e do Adolescente, presume-se que o menor de 18 anos não dispõe de capacidade para responder penalmente. O adolescente, nessa condição, é considerado como uma pessoa em desenvolvimento, ficando sujeito à doutrina da proteção integral, que visa garantir-lhe o desenvolvimento saudável e a integridade.
A criminalidade tem causas biopsicossociais, ou seja, diversas causas, de ordens biológicas, psicológicas e sociais. As pesquisas envolvendo os adolescentes infratores apontam para uma gritante omissão da sociedade e do Estado no que diz respeito ao tema. Chamam a atenção o número de famílias monoparentais, o número de familiares com doenças mentais e o número de jovens fora da escola. Pergunta-se: O que o Estado está fazendo a esse respeito?
Será que os direitos das crianças e adolescentes assegurados pela Convenção, pela Constituição Federal e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente estão sendo assegurados, como prioridade absoluta? É óbvio que não! A verdade é que o Estado some ao longo da infância e da adolescência desses indivíduos e aparece posteriormente apenas para puni-los, sem que detenha autoridade moral para tanto. Isso me traz à memória a parábola do pastor e das ovelhas.
"Aquele que não entra pela porta do curral das ovelhas, mas sobe por outra parte, é ladrão e salteador. Aquele, porém, que entra pela porta é o pastor das ovelhas. A este o porteiro abre, e as ovelhas ouvem a sua voz, e chama pelo nome às suas ovelhas, e as traz para fora. E, quando tira para fora as suas ovelhas, vai adiante delas, e as ovelhas o seguem, porque conhecem a sua voz. Mas de modo nenhum seguirão o estranho, antes fugirão, por que não conhecem a voz dos estranhos" (João 10.1-5).
O Estado aparece de repente, como um estranho, tentando fazer valer a sua voz, a lei, mas esses adolescentes não conhecem a sua voz, não obedecem à sua voz. Essa parábola, aliás, poderia substituir tudo o que até aqui fora escrito, sem mais nada a acrescentar. De todo o exposto, fica o destaque maior para o fato de ser a inimputabilidade dos menores de 18 anos uma cláusula pétrea, porque isso, como já dito, é suficiente para obstar o ânimo dos entusiastas, que vêem na redução da maioridade uma fórmula mágica.