quinta-feira, 20 de março de 2014

Crime organizado

Não é de hoje que o legislador vem demonstrando preocupação no que diz respeito à persecução penal das organizações criminosas. Nessa esteira, podem ser citadas três leis relacionadas ao tema, em ordem cronológica, a fim de facilitar a compreensão, quais sejam: Lei n.º 9.034/1995; Lei n.º 12.694/2012 e Lei n.º 12.850/2013.
Apenas a título de curiosidade, realizei uma breve análise acerca do tema, mais especificamente no que tange às leis mais recentes, para introduzir um estudo mais profundo. Trago abaixo algumas observações relacionadas aos pontos que mais me chamaram a atenção, mas sem nenhuma pretensão de esgotar o assunto, que é amplo.
A primeira delas, em síntese, definiu instrumentos de investigação de organizações criminosas, associações criminosas e quadrilhas ou bandos, contudo, não definiu organização criminosa, permanecendo, portanto, inaplicável nesse tocante, exigindo alguma solução. Evidenciava-se o gritante equívoco por parte do Legislativo.
Alguns passaram a sustentar que seria possível o emprego da definição de organização criminosa trazido pela Convenção de Palermo, mas a tese não foi aceita pelo Supremo Tribunal Federal, porquanto somente a lei pode funcionar como fonte formal incriminadora, e não havia na lei a figura típica da organização criminosa.
A Lei n.º 12.694/2012, por sua vez, trouxe a definição de organização criminosa, mas não cominou nenhuma pena, de modo que a referida prática continuou a ser atípica, apresentando-se, apenas, como uma forma de cometer crimes. A aludida lei prevê a possibilidade de um órgão colegiado julgar crimes praticados por organizações.
Definição: "associação de três ou mais pessoas, estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de crimes cuja pena máxima seja igual ou superior a quatro anos ou que sejam de caráter transnacional".
No ano seguinte surgiu a Lei n.º 12.850/2013, que trouxe uma nova definição de organização criminosa, que desta feita passou a ser crime, revogando a definição trazida pela lei anterior e revogando integralmente a Lei n.º 9.034/1995. Essa é a lei vigente, atualmente, no que diz respeito às organizações criminosas.
Em verdade, a definição é praticamente a mesma, pois a única diferença reside no fato de que a nova lei exige a associação de quatro ou mais pessoas, enquanto a lei anterior exigia três ou mais pessoas. De resto, vale frisar, os requisitos para que se possa cogitar a existência de uma organização criminosa são os mesmos.
O que chama a atenção é que a lei trata dos meios de investigação e de obtenção de prova, destacando-se a colaboração premiada, a ação controlada e a infiltração de agentes, mas revogou a disciplina, por exemplo, da captação ambiental de sinais eletromagnéticos, ópticos ou acústicos contida na Lei n.º 9.034/1995.
Denota-se que a nova lei revogou integralmente a lei anterior, de maneira expressa, mas não cuidou de todos os aspectos da lei revogada. A captação ambiental continua existindo como instrumento de investigação, mas a respectiva disciplina foi revogada, o que pode redundar numa situação de insegurança na sua utilização.
A pena cominada para o crime de organização criminosa varia de três a oito anos, sem prejuízo das penas correspondentes às demais infrações penais praticadas. O que chama a atenção é que há uma causa especial de aumento de pena quando for verificada a transnacionalidade do delito, e essa questão deve ser vista com cautela.
Em se tratando de uma organização criminosa configurada justamente por conta da transnacionalidade dos delitos, mesmo quando as penas desses crimes forem inferiores a quatro anos, a aplicação da causa de aumento de pena resultará em evidente bis in idem, porquanto essa circunstância já figura como elemento do tipo penal.
A causa de aumento somente poderá ser aplicada em se tratando de infrações cujas penas sejam superiores a quatro anos e de caráter transnacional. O quantum da pena funciona para a configuração da organização criminosa, enquanto a transnacionalidade justifica a majorante. Fora dessa hipótese, não há como ser aplicada a causa de aumento.
Além disso, a lei considera crime revelar a identidade, fotografar ou filmar o colaborador, sem sua prévia autorização por escrito. Ou seja, cuidou apenas de proteger o réu colaborador nesse tocante, deixando de lado o agente infiltrado, que também corre um risco enorme caso a sua identidade seja revelada publicamente.
Por fim, foi alterado o nomen juris do crime de quadrilha ou bando, que passa a ser "associação criminosa". A pena foi mantida, de modo que ainda será cabível a suspensão condicional do processo, o que também se apresenta como um evidente lapso legislativo. No entanto, foi aumentada a pena do crime de falso testemunho.
Talvez isso se deva à previsão no sentido de que o colaborador renunciará ao direito ao silêncio e estará sujeito ao compromisso legal de dizer a verdade. Tentaram, ao que parece, estabelecer uma relação entre a colaboração premiada e o crime de falso testemunho. Esqueceram-se, contudo, de alterar o preceito primário.
Cometem o crime de falso testemunho a testemunha, o perito, o contador, o tradutor e o intérprete, jamais o réu. O acusado, na colaboração, confessa a prática do crime e, portanto, não deixa de ser acusado e nem passa a ser testemunha, para que possa incorrer no tipo penal em comento. Esse é mais um aspecto curioso da lei.
Estamos diante de um diploma relativamente recente, que merece ser lido e estudado com cautela, pois num primeiro olhar já se pode identificar algumas incongruências. De qualquer modo, ao que tudo indica, serão cada vez mais comuns as imputações relativas a organizações criminosas, exigindo o preparo dos operadores do direito.

segunda-feira, 10 de março de 2014

Crimes hediondos


Recentemente, tive acesso ao relatório final de uma pesquisa realizada pelo Instituto Latino Americano das Nações Unidas para Prevenção do Delito e Tratamento do Delinquente (ILANUD), com relação à Lei dos Crimes Hediondos. Cuida-se de um trabalho excelente, cujos resultados despertaram-me a atenção, merecendo destaque.
Sabe-se bem que a própria Constituição de 1988 preconizou a criação da Lei dos Crimes Hediondos, ao prescrever que: "a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos [...]".
No decorrer do ano de 1989 foram apresentados diversos projetos de lei relacionados à matéria e um novo projeto foi apresentado em maio de 1990, passando a tramitar sob regime de urgência. O projeto foi aprovado pelo Senado em junho e encaminhado à Câmara, que elaborou um substitutivo, contemplando os demais projetos de lei.
O substitutivo foi aprovado e retornou para o Senado, onde foi aceito, sendo a lei promulgada  pelo Presidente da República em 25 de julho de 1990. Houve, na época, reclamações de parlamentares no sentido de que não tiveram tempo para analisar o substitutivo. Nesse contexto, surgiu a Lei n.º 8072, de 25 de julho de 1990.
Não são poucos os que relacionam a criação da referida lei á repercussão do sequestro do empresário Abílio Diniz, ocorrido em 1989. O fato é que, de qualquer sorte, o texto constitucional precisava ser regulamentado, mas a pressa demonstrada não deixa de chamar a atenção, indicando que essa relação pode, de fato, ter existido.
Em 1994 a lei foi alterada, incluindo-se o homicídio qualificado no rol dos crimes hediondos. Na ocasião, os parlamentares destacaram o empenho demonstrado pela novelista Glória Perez no sentido de que a alteração fosse levada a efeito, após o assassinato de sua filha que, como é sabido, também causou grande repercussão.
Pode-se citar ainda o sequestro do publicitário Roberto Medina, em 1990, as chacinas da Candelária e de Vigário Geral, em 1993, as pílulas de farinha, em 1998, e o assassinato do menino João Hélio, em 2007, como fatos históricos que influenciaram na criação ou nas alterações levadas a efeito em relação à aludida lei.
Denota-se facilmente que as discussões em torno da lei em comento sempre se revestiram de um caráter emocional. O que importa, atualmente, é verificar se essa lei surtiu o efeito esperado, impactando nos índices de criminalidade, no sentido de diminuí-los. Será que uma lei considerada mais severa diminuiu esses índices?
De acordo com o relatório, não foi possível concluir que a Lei dos Crimes Hediondos causou o efeito esperado quando de sua aprovação, e que nem mesmo as alterações posteriores surtiram efeito no sentido de reduzir a criminalidade. O que salta aos olhos, em verdade, é que a lei contribuiu para a superpopulação carcerária.
Não é possível relacionar diretamente o fortalecimento das facções criminosas à lei em exame, mas há uma relação inegável entre esse fenômeno e a apontada superpopulação carcerária. A lei, como era de se esperar, não inibe a prática de crimes, sobretudo quando se trata de crimes não premeditados, praticados por impulso.
Prova disso é que não são poucos os casos de reincidentes específicos em crimes considerados hediondos. A verdade é que o preso só toma conhecimento da lei e de seus efeitos negativos depois de encarcerado. Ora, seria até ingenuidade imaginar que um pretenso criminoso consulta a legislação antes de optar pelo crime.
O surgimento da Lei dos Crimes Hediondos decorreu de forte pressão popular e midiática, tendo um elevado apelo emocional, mas não resolveu nada. Demais disso, a constitucionalidade dessa lei foi e é questionada até hoje, já tendo havido notáveis mudanças, a exemplo do que ocorreu com o regime integralmente fechado.
A vedação à liberdade provisória e o regime integralmente fechado, que já haviam sido considerados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, acabaram sendo revogados no ano de 2007. Ainda hoje se fala em incluir novos crimes no rol dos hediondos, como se isso fosse suficiente para acabar com a criminalidade.
A Lei  n.º 8072/1990 está prestes a completar 24 (vinte e quatro) anos, mas não é possível verificar, na prática, nenhum dado que aponte para a redução nos índices de criminalidade. O que se têm, verdade seja dita, é uma superpopulação carcerária que aumenta a cada dia e o consequente e inegável fortalecimento das facções criminosas.
As políticas criminas, especialmente no que tange à criação de leis de natureza penal e processual penal, precisam ser repensadas e reavaliadas. O legislador, na atualidade, continua agindo como no passado, cedendo às pressões mais diversas e, em grande parte, infundadas, e a população continua achando que isso resolve.

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