sexta-feira, 19 de setembro de 2014

A limitação do habeas corpus em face da CADH

Embora já tenha tratado anteriormente a respeito da vedação ao habeas corpus substitutivo de recurso ordinário, andei pensando no assunto novamente, mas desta feita à luz da Convenção Americana de Direitos Humanos, que entrou em vigor, no Brasil, em 25 de setembro de 1992, através do Decreto n.º 678/1992, e que, além de assegurar inúmeras garantias individuais, também protege a liberdade de locomoção.
Prevê a Convenção que: "Nos Estados-Partes cujas leis preveem que toda pessoa que se vir ameaçada de ser privada de sua liberdade tem direito a recorrer a um juiz ou tribunal competente a fim de que este decida sobre a legalidade de tal ameaça, tal recurso não pode ser restringido nem abolido". Tem-se, nessa esteira, que a recente guinada jurisprudencial não encontra amparo na referida Convenção, pelo contrário.
Denota-se facilmente que a jurisprudência que vem se consolidando representa verdadeira afronta á Convenção Americana de Direitos Humanos. É sabido que o habeas corpus, apesar de previsto dentre os recursos no Código de Processo Penal, em verdade não se trata de recurso, mas de ação autônoma de impugnação, não obstante, salta aos olhos que o texto da Convenção aplica-se perfeitamente ao remédio heroico.
O único remédio colocado à disposição de toda pessoa que se vir ameaçada de ser privada de sua liberdade, e que pode ser endereçado a um juiz ou tribunal é o habeas corpus, haja vista que o recurso ordinário somente pode ser endereçado ao Superior Tribunal de Justiça ou ao Supremo Tribunal Federal. Não há como sustentar, portanto, que a Convenção, nesse tocante, diz respeito ao recurso ordinário.
O citado dispositivo da Convenção é muito claro ao prescrever que tal recurso (que tecnicamente não é um recurso) não pode ser restringido. Conforme ensina Piovesan (2005, p. 9): "[...] por força do art. 5.º, § 2º, todos os tratados de direitos humanos, independentemente do quorum de sua aprovação, são materialmente constitucionais".
Nessa esteira, o artigo 5.º, § 2.º, da Constituição, prevê que: "Os direitos e garantias expressos nessa Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte". Conforme o exposto, cuida-se de garantia materialmente constitucional.
Não se sustenta, portanto, o argumento segundo o qual o habeas corpus substitutivo de recurso ordinário burla o sistema recursal previsto pela Constituição. Isso porque não é possível restringir uma garantia individual, de índole constitucional, a pretexto de se resguardar o sistema recursal.
É importante lembrar que o princípio da dignidade da pessoa humana, que alicerça todo o sistema de direitos e garantias, repudia o sacrifício de direitos humanos em prol de interesses coletivos. A bem da verdade, aliás, restringir o habeas corpus interessa tão somente àqueles preocupados em diminuir o número de processos nos Tribunais.
Não obstante a questão já tenha sido enfrentada por outros ângulos, temos, de acordo com o exposto, que a Convenção Americana de Direitos Humanos veda qualquer tipo de tentativa de restrição ao habeas corpus. Cuida-se, a toda evidência, de mais um precioso argumento a ser utilizado diante dessa arbitrária corrente jurisprudencial.

Referências bibliográficas:

PIOVESAN, Flávia.Tratados internacionais de proteção dos direitos humanos e a Constituição Federal de 1988. Boletim IBCCRIM. São Paulo, n. 153, p. 8-9, ago. 2005.

quinta-feira, 20 de março de 2014

Crime organizado

Não é de hoje que o legislador vem demonstrando preocupação no que diz respeito à persecução penal das organizações criminosas. Nessa esteira, podem ser citadas três leis relacionadas ao tema, em ordem cronológica, a fim de facilitar a compreensão, quais sejam: Lei n.º 9.034/1995; Lei n.º 12.694/2012 e Lei n.º 12.850/2013.
Apenas a título de curiosidade, realizei uma breve análise acerca do tema, mais especificamente no que tange às leis mais recentes, para introduzir um estudo mais profundo. Trago abaixo algumas observações relacionadas aos pontos que mais me chamaram a atenção, mas sem nenhuma pretensão de esgotar o assunto, que é amplo.
A primeira delas, em síntese, definiu instrumentos de investigação de organizações criminosas, associações criminosas e quadrilhas ou bandos, contudo, não definiu organização criminosa, permanecendo, portanto, inaplicável nesse tocante, exigindo alguma solução. Evidenciava-se o gritante equívoco por parte do Legislativo.
Alguns passaram a sustentar que seria possível o emprego da definição de organização criminosa trazido pela Convenção de Palermo, mas a tese não foi aceita pelo Supremo Tribunal Federal, porquanto somente a lei pode funcionar como fonte formal incriminadora, e não havia na lei a figura típica da organização criminosa.
A Lei n.º 12.694/2012, por sua vez, trouxe a definição de organização criminosa, mas não cominou nenhuma pena, de modo que a referida prática continuou a ser atípica, apresentando-se, apenas, como uma forma de cometer crimes. A aludida lei prevê a possibilidade de um órgão colegiado julgar crimes praticados por organizações.
Definição: "associação de três ou mais pessoas, estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de crimes cuja pena máxima seja igual ou superior a quatro anos ou que sejam de caráter transnacional".
No ano seguinte surgiu a Lei n.º 12.850/2013, que trouxe uma nova definição de organização criminosa, que desta feita passou a ser crime, revogando a definição trazida pela lei anterior e revogando integralmente a Lei n.º 9.034/1995. Essa é a lei vigente, atualmente, no que diz respeito às organizações criminosas.
Em verdade, a definição é praticamente a mesma, pois a única diferença reside no fato de que a nova lei exige a associação de quatro ou mais pessoas, enquanto a lei anterior exigia três ou mais pessoas. De resto, vale frisar, os requisitos para que se possa cogitar a existência de uma organização criminosa são os mesmos.
O que chama a atenção é que a lei trata dos meios de investigação e de obtenção de prova, destacando-se a colaboração premiada, a ação controlada e a infiltração de agentes, mas revogou a disciplina, por exemplo, da captação ambiental de sinais eletromagnéticos, ópticos ou acústicos contida na Lei n.º 9.034/1995.
Denota-se que a nova lei revogou integralmente a lei anterior, de maneira expressa, mas não cuidou de todos os aspectos da lei revogada. A captação ambiental continua existindo como instrumento de investigação, mas a respectiva disciplina foi revogada, o que pode redundar numa situação de insegurança na sua utilização.
A pena cominada para o crime de organização criminosa varia de três a oito anos, sem prejuízo das penas correspondentes às demais infrações penais praticadas. O que chama a atenção é que há uma causa especial de aumento de pena quando for verificada a transnacionalidade do delito, e essa questão deve ser vista com cautela.
Em se tratando de uma organização criminosa configurada justamente por conta da transnacionalidade dos delitos, mesmo quando as penas desses crimes forem inferiores a quatro anos, a aplicação da causa de aumento de pena resultará em evidente bis in idem, porquanto essa circunstância já figura como elemento do tipo penal.
A causa de aumento somente poderá ser aplicada em se tratando de infrações cujas penas sejam superiores a quatro anos e de caráter transnacional. O quantum da pena funciona para a configuração da organização criminosa, enquanto a transnacionalidade justifica a majorante. Fora dessa hipótese, não há como ser aplicada a causa de aumento.
Além disso, a lei considera crime revelar a identidade, fotografar ou filmar o colaborador, sem sua prévia autorização por escrito. Ou seja, cuidou apenas de proteger o réu colaborador nesse tocante, deixando de lado o agente infiltrado, que também corre um risco enorme caso a sua identidade seja revelada publicamente.
Por fim, foi alterado o nomen juris do crime de quadrilha ou bando, que passa a ser "associação criminosa". A pena foi mantida, de modo que ainda será cabível a suspensão condicional do processo, o que também se apresenta como um evidente lapso legislativo. No entanto, foi aumentada a pena do crime de falso testemunho.
Talvez isso se deva à previsão no sentido de que o colaborador renunciará ao direito ao silêncio e estará sujeito ao compromisso legal de dizer a verdade. Tentaram, ao que parece, estabelecer uma relação entre a colaboração premiada e o crime de falso testemunho. Esqueceram-se, contudo, de alterar o preceito primário.
Cometem o crime de falso testemunho a testemunha, o perito, o contador, o tradutor e o intérprete, jamais o réu. O acusado, na colaboração, confessa a prática do crime e, portanto, não deixa de ser acusado e nem passa a ser testemunha, para que possa incorrer no tipo penal em comento. Esse é mais um aspecto curioso da lei.
Estamos diante de um diploma relativamente recente, que merece ser lido e estudado com cautela, pois num primeiro olhar já se pode identificar algumas incongruências. De qualquer modo, ao que tudo indica, serão cada vez mais comuns as imputações relativas a organizações criminosas, exigindo o preparo dos operadores do direito.

segunda-feira, 10 de março de 2014

Crimes hediondos


Recentemente, tive acesso ao relatório final de uma pesquisa realizada pelo Instituto Latino Americano das Nações Unidas para Prevenção do Delito e Tratamento do Delinquente (ILANUD), com relação à Lei dos Crimes Hediondos. Cuida-se de um trabalho excelente, cujos resultados despertaram-me a atenção, merecendo destaque.
Sabe-se bem que a própria Constituição de 1988 preconizou a criação da Lei dos Crimes Hediondos, ao prescrever que: "a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos [...]".
No decorrer do ano de 1989 foram apresentados diversos projetos de lei relacionados à matéria e um novo projeto foi apresentado em maio de 1990, passando a tramitar sob regime de urgência. O projeto foi aprovado pelo Senado em junho e encaminhado à Câmara, que elaborou um substitutivo, contemplando os demais projetos de lei.
O substitutivo foi aprovado e retornou para o Senado, onde foi aceito, sendo a lei promulgada  pelo Presidente da República em 25 de julho de 1990. Houve, na época, reclamações de parlamentares no sentido de que não tiveram tempo para analisar o substitutivo. Nesse contexto, surgiu a Lei n.º 8072, de 25 de julho de 1990.
Não são poucos os que relacionam a criação da referida lei á repercussão do sequestro do empresário Abílio Diniz, ocorrido em 1989. O fato é que, de qualquer sorte, o texto constitucional precisava ser regulamentado, mas a pressa demonstrada não deixa de chamar a atenção, indicando que essa relação pode, de fato, ter existido.
Em 1994 a lei foi alterada, incluindo-se o homicídio qualificado no rol dos crimes hediondos. Na ocasião, os parlamentares destacaram o empenho demonstrado pela novelista Glória Perez no sentido de que a alteração fosse levada a efeito, após o assassinato de sua filha que, como é sabido, também causou grande repercussão.
Pode-se citar ainda o sequestro do publicitário Roberto Medina, em 1990, as chacinas da Candelária e de Vigário Geral, em 1993, as pílulas de farinha, em 1998, e o assassinato do menino João Hélio, em 2007, como fatos históricos que influenciaram na criação ou nas alterações levadas a efeito em relação à aludida lei.
Denota-se facilmente que as discussões em torno da lei em comento sempre se revestiram de um caráter emocional. O que importa, atualmente, é verificar se essa lei surtiu o efeito esperado, impactando nos índices de criminalidade, no sentido de diminuí-los. Será que uma lei considerada mais severa diminuiu esses índices?
De acordo com o relatório, não foi possível concluir que a Lei dos Crimes Hediondos causou o efeito esperado quando de sua aprovação, e que nem mesmo as alterações posteriores surtiram efeito no sentido de reduzir a criminalidade. O que salta aos olhos, em verdade, é que a lei contribuiu para a superpopulação carcerária.
Não é possível relacionar diretamente o fortalecimento das facções criminosas à lei em exame, mas há uma relação inegável entre esse fenômeno e a apontada superpopulação carcerária. A lei, como era de se esperar, não inibe a prática de crimes, sobretudo quando se trata de crimes não premeditados, praticados por impulso.
Prova disso é que não são poucos os casos de reincidentes específicos em crimes considerados hediondos. A verdade é que o preso só toma conhecimento da lei e de seus efeitos negativos depois de encarcerado. Ora, seria até ingenuidade imaginar que um pretenso criminoso consulta a legislação antes de optar pelo crime.
O surgimento da Lei dos Crimes Hediondos decorreu de forte pressão popular e midiática, tendo um elevado apelo emocional, mas não resolveu nada. Demais disso, a constitucionalidade dessa lei foi e é questionada até hoje, já tendo havido notáveis mudanças, a exemplo do que ocorreu com o regime integralmente fechado.
A vedação à liberdade provisória e o regime integralmente fechado, que já haviam sido considerados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, acabaram sendo revogados no ano de 2007. Ainda hoje se fala em incluir novos crimes no rol dos hediondos, como se isso fosse suficiente para acabar com a criminalidade.
A Lei  n.º 8072/1990 está prestes a completar 24 (vinte e quatro) anos, mas não é possível verificar, na prática, nenhum dado que aponte para a redução nos índices de criminalidade. O que se têm, verdade seja dita, é uma superpopulação carcerária que aumenta a cada dia e o consequente e inegável fortalecimento das facções criminosas.
As políticas criminas, especialmente no que tange à criação de leis de natureza penal e processual penal, precisam ser repensadas e reavaliadas. O legislador, na atualidade, continua agindo como no passado, cedendo às pressões mais diversas e, em grande parte, infundadas, e a população continua achando que isso resolve.

Fonte:

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Medida cautelar em matéria processual penal


Trago à apreciação de todos uma recente experiência que pode ser muito útil àqueles que se iniciam na advocacia criminal. Por tratar-se de um caso verídico que poderá, desde logo, ser tomado como exemplo, creio que o entendimento a respeito da questão será facilitado. Cuidaremos, pois, da medida cautelar em matéria processual penal.
Pois bem, alguns indivíduos foram condenados em primeira instância ao cumprimento de uma pena de reclusão em regime inicial fechado, interpusemos recurso de apelação e a condenação foi mantida. Na sequência, interpusemos recurso especial, que não foi admitido pelo Tribunal de Justiça, levando-nos a agravar a essa decisão.
O agravo, interposto nos próprios autos, ainda não foi julgado pelo Superior Tribunal de Justiça. Ocorre que, após a digitalização dos autos, o processo físico foi devolvido ao Tribunal de Justiça, que determinou a baixa dos autos à Vara de origem. Até então, estávamos apenas aguardando o julgamento do agravo.
Na posse dos autos, o juiz da Vara de origem determinou que fosse dado cumprimento ao acórdão que confirmou a condenação e a consequente expedição de mandados de prisão, sustentando que o recurso especial não possui efeito suspensivo. Nós, que estávamos absolutamente tranquilos, fomos pegos de surpresa com a referida decisão.
Isso porque, de acordo com a Constituição Federal, ninguém pode ser considerado culpado antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Ora, havendo agravo pendente de julgamento, é óbvio que não há que se falar em trânsito em julgado, e essa foi a razão pela qual nos causou surpresa a expedição dos mandados de prisão.
Não se ignora que, de acordo com a legislação ordinária, o recurso especial e o agravo em recurso especial não possuem efeito suspensivo, mas a questão deve ser interpretada à luz da Constituição, e essa interpretação não permite o cumprimento antecipado da pena. Surgiu então a dúvida: o que fazer nessas circunstâncias?
No cartório os serventuários diziam que teríamos que impetrar habeas corpus, o que foi endossado por outros advogados que atuam na causa. Lembramos então da medida cautelar, prevista pelo Código de Processo Civil e também pelo Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça, e foi o que fizemos, pedindo liminar.
Enquanto o habeas corpus deveria ser julgado pelo Tribunal de Justiça para que, posteriormente, conseguíssemos chegar ao Superior Tribunal de Justiça, a medida cautelar alcançaria diretamente o Tribunal Superior, e a situação era evidentemente urgente. No dia que antecedeu o recesso a liminar pleiteada foi deferida.
A Ministra relatora do agravo em recurso especial concedeu efeito suspensivo ao recurso, obstando o cumprimento dos mandados de prisão, enquanto não transitar em julgado a condenação dos acusados, que, por conta dessa decisão, sequer chegaram a ser presos. A opção pela medida cautelar foi, como se pode notar, a mais acertada.
Essa medida cautelar foi ajuizada com arrimo no artigo 798 do Código de Processo Civil e nos artigos 34, inciso V, e 288, ambos do Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça. Cabe lembrar, nessa esteira, por oportuno, que o Código de Processo Civil, como é sabido, aplica-se subsidiariamente ao Código de Processo Penal.
A medida cautelar tem por objetivo a proteção de direito suscetível de grave dano de incerta reparação e o seu emprego mais comum, em matéria processual penal, ocorre no sentido de conferir efeito suspensivo aos recursos que, por lei, não tenham esse efeito, tal como no recurso ordinário, no especial e no extraordinário.
Até concordo que o habeas corpus também seria cabível, mas, naquelas circunstâncias, já prevendo que o pedido de liminar em habeas corpus seria indeferido, como costuma acontecer, optamos pela medida cautelar. É uma petição não muito comum, que não costuma ser tratada com profundidade pela doutrina, mas que foi muito útil.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Trabalhar...


É impressionante como os fatos que chegam ao nosso conhecimento através da advocacia nos fazem refletir acerca de nós mesmos e da vida como um todo. Venho atuando, já há algum tempo, em um caso de homicídio ocorrido no ambiente de trabalho e confesso que a proximidade do desfecho tem despertado em mim reflexões muito interessantes, nesse caso, a respeito da própria necessidade de trabalhar.
Aliás, é mesmo uma necessidade? De acordo com as escrituras sagradas, por conta do pecado o homem foi punido: "Comerás o pão com o suor do teu rosto". Durante muito tempo o trabalho foi encarado como uma punição e os nobres orgulhavam-se por não precisarem disso. Para mim, contudo, o trabalho é um verdadeiro privilégio.
É inegável que nossos próprios instintos de sobrevivência e de preservação da espécie nos impelem ao trabalho, que nos proporciona o alimento, a moradia e a segurança de que tanto necessitamos. Mas a realização pessoal, que diz respeito ao nosso ego, à nossa auto-estima, também interferem decisivamente nesse processo.
Diz-se que o trabalho enobrece o homem, o que é verdade, na medida em que desperta a vontade de servir, de ajudar ao próximo, evidenciando que a função social do trabalho diz respeito tanto a nós quanto aos outros. Progredimos e evoluímos através do trabalho, mas também contribuímos para o progresso e a evolução da comunidade.
Lutamos em busca de melhores condições de vida, de conforto, de saúde e de educação, para nós e para os nossos. O trabalho nos dá a oportunidade de educar e de cuidar de um filho, e também a de amparar os pais, que nos ampararam por toda a vida, sempre com muito trabalho. Mas, afinal, trabalhamos para viver ou vivemos para trabalhar?
Também dizem que viver é morrer aos poucos e que quanto mais vivemos, mais nos aproximamos da morte. Em busca dos benefícios proporcionados pelo trabalho, muitas vezes, deixamos de gozar a vida em sua plenitude, nos afastando da família, dos filhos, dos pais, dos amigos, deixando de lado os momentos de lazer e até os de descanso.
Buscando melhorar de vida, perdemos em qualidade de vida e quem paga o preço, na grande maioria das vezes, é a nossa saúde. Paradoxalmente, trabalhamos para comprar roupas e carros, para irmos trabalhar. Há, portanto, aspectos positivos e aspectos negativos relacionados ao trabalho, e nós buscamos encontrar um equilíbrio.
Não sei dizer se trabalhamos para viver ou se vivemos para trabalhar, mas o fato é que o trabalho se confunde tanto com a nossa vida pessoal, ao ponto de se tornarem uma coisa só. Ainda sim não me sinto punido por isso, muito pelo contrário, fico feliz pelo privilégio de poder exercer uma profissão maravilhosa como a advocacia.
Talvez o trabalho seja uma simples vocação, um chamamento irresistível, uma inspiração, uma lei natural que nos compele ao esforço na mesma medida em que nos recompensa, ainda que às vezes tardiamente. E toda essa reflexão surgiu porque vi injustiça na história de uma mulher repetidamente humilhada em seu ambiente de trabalho.
Achei injusto, mesmo inconscientemente, e me coloquei a refletir sobre a questão. Refletindo sobre o trabalho dos outros, pensei também sobre o meu trabalho e alcancei conclusões que, embora aparentemente vagas, me fizeram valorizar ainda mais a minha profissão e também as outras. Eis aqui mais um aspecto positivo do trabalho.